Por Jairo Glikson –
Quando falamos sobre violência contra a mulher, é quase automático pensarmos na agressão física. Aquela que deixa marcas visíveis. Mas nem toda violência deixa hematomas. Existem feridas que não aparecem no corpo, mas que sangram na dignidade, na liberdade e na autonomia. Uma delas é a violência patrimonial, uma realidade muito mais comum e silenciosa do que se imagina.
E atenção: não se trata apenas de algo que acontece entre marido e mulher. Essa forma de violência pode vir do pai que controla o dinheiro da filha, do irmão que se apossa dos bens da irmã, de um companheiro, ex-companheiro e, até mesmo, de filhos que subjugam suas mães. Não há um único molde. O que existe, de fato, é uma relação de poder, de dominação e de controle.
Prevista na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), que estabelece cinco formas de violência contra a mulher (física, psicológica, moral, sexual e patrimonial), a violência patrimonial é aquela que atinge os bens, valores, recursos financeiros ou qualquer patrimônio da mulher. O patrimônio não é só material.
Isso mesmo: não precisa de um empurrão, um tapa ou um grito. Basta restringir, destruir, esconder ou reter seus pertences, seu dinheiro, seus documentos, sua liberdade financeira.
Na prática, ela acontece de várias formas: a mãe que é impedida de acessar sua própria aposentadoria; a esposa que tem seu cartão bancário tomado, sem poder sequer comprar seus itens básicos; o irmão que vende o carro da irmã sem autorização; o ex-marido que some com documentos, esconde bens ou deixa de pagar pensão para forçar a mulher a “ceder”; o pai que se recusa a dividir herança ou impede a filha de usufruir de seus direitos.
É quando o outro entende que controle financeiro também é controle de vida. E se apropria disso como ferramenta de dominação.
E isso também é violência porque uma mulher sem acesso ao próprio dinheiro, aos seus documentos, aos seus bens ou aos meios para reconstruir sua vida, muitas vezes, permanece refém de situações de abuso, de relações nocivas e até de agressões físicas.
A violência patrimonial não é só sobre dinheiro. É sobre liberdade. Sobre impedir alguém de ser dona do próprio caminho. É sufocar sem apertar. É prender sem amarras visíveis.
A Lei Maria da Penha, no artigo 7º define, de forma clara, a violência patrimonial como:
“Qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total dos seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.”
E mais: ela é considerada uma violência doméstica, ainda que não haja convivência íntima de casal, desde que esteja no âmbito familiar, afetivo ou de coabitação.
Mas por que ainda é tão invisível? Porque, muitas vezes, não é vista como “grave”. Afinal, não há sangue, não há escândalo. Há “só” um cartão retido, um documento que “sumiu”, uma senha que nunca é compartilhada. Coisas aparentemente pequenas, mas que minam a autonomia de uma mulher todos os dias.
Além disso, existe uma cultura enraizada que naturaliza o controle econômico como algo aceitável dentro das relações, especialmente familiares e afetivas.
Fique alerta a estes sinais:
- Você não tem acesso às suas próprias contas, rendimentos ou benefícios?
- Seus bens, móveis ou imóveis, foram vendidos, escondidos ou transferidos sem seu consentimento?
- Você é impedida de trabalhar, estudar ou gerar renda?
- Seus documentos pessoais são retidos ou escondidos?
Se respondeu “sim” a uma ou mais dessas perguntas, acenda o sinal vermelho. Isso não é cuidado. Isso não é amor. É violência.
Denunciar é um direito. Romper é libertador. A mulher que sofre violência patrimonial pode e deve buscar ajuda. A denúncia não precisa, e nem deve, esperar que a situação piore ou que se transforme em violência física. A violência patrimonial, sozinha, já é motivo suficiente para acionar os órgãos de proteção.
No final das contas, o que está em jogo é a liberdade. Liberdade de existir, de ter, de ser dona de si. E isso começa quando entendemos que, sim, dinheiro é liberdade. Patrimônio é autonomia. Controlar isso é, sim, uma das formas mais crueis e silenciosas de violência.
Que possamos falar mais sobre isso. E, principalmente, agir mais.

Dr. Jairo Glikson
Advogado civilista há mais de 20 anos, com atuação especializada em contencioso e litigância cível. Possui também uma trajetória marcada pela vida pública — foi candidato a vice-governador de São Paulo e a vice-prefeito da capital por duas vezes. É membro atuante de conselhos e associações de bairro.
**Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião deste veículo de comunicação.

- O Movimento Advocacia Independente (MAI) é uma associação privada sediada em São Paulo, Brasil. Seu foco principal é a defesa de direitos sociais, atuando como uma organização voltada para a advocacia e questões jurídicas.
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2 Comentários
Realmente esse artigo aponta para um lado invisível da violência contra mulher. As vezes vivesse uma vida inteira sem a percepção do fato que ao ser descoberto destrói uma vida.
Excelente artigo! De fato, a violência patrimonial ocorre muito mais do que se imagina! E está muito próxima de nós.