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Estão Invertendo a Ordem das Coisas: O Ônus da Prova é do Acusador, Não da Defesa

Alfredo Scaff – Presidente do MAI

Vivemos tempos estranhos, em que princípios jurídicos elementares parecem ser constantemente desafiados — e até mesmo invertidos — diante da opinião pública e, em certos casos, até nos tribunais. Um desses princípios é o do ônus da prova, uma regra básica de qualquer Estado Democrático de Direito: quem acusa deve provar o que alega. Em outras palavras, o Ministério Público, quando propõe uma ação penal, tem a obrigação de demonstrar a culpa do réu com base em provas robustas e irrefutáveis.

No entanto, cresce a sensação — e infelizmente, em alguns casos, a realidade — de que cabe à defesa provar a inocência do acusado, como se a ausência de provas por parte da acusação pudesse ser compensada por uma exigência desmedida de autodefesa. Isso representa um desvio perigoso do que está previsto tanto na Constituição quanto no Código de Processo Penal.

O artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal de 1988, é claro: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.” Trata-se da presunção de inocência, um princípio que garante que todo indivíduo é inocente até que se prove o contrário — e esse “provar o contrário” cabe, exclusivamente, à acusação.

Transformar a defesa em protagonista da prova é inverter a lógica jurídica. O réu não tem que provar que não fez; quem afirma que ele fez é que deve provar que sim.

Quando se desloca para a defesa a obrigação de provar a inocência, abre-se caminho para injustiças irreversíveis. Como provar que algo não aconteceu? Como demonstrar a inexistência de um fato? Isso é logicamente muito mais difícil — e, muitas vezes, impossível. Daí a razão pela qual os sistemas jurídicos sérios e comprometidos com a justiça transferem o ônus da prova para quem acusa.

Mais do que uma questão técnica, esse é um tema de garantias individuais e liberdades civis. Condenar alguém com base em presunções, suposições ou provas frágeis é o oposto da justiça. É o que o jurista italiano Francesco Carnelutti chamava de “justiça de faquir”, aquela que se equilibra perigosamente sobre a corda bamba da dúvida, sem a rede de segurança da prova cabal.

Outro fator que contribui para essa inversão perversa é o espetáculo midiático. Muitos julgamentos são antecipados nos meios de comunicação, nos quais se presume a culpa antes mesmo de qualquer denúncia formal. A pressão social e política não pode transformar o processo penal em um tribunal de exceção, onde o acusado precisa provar que é inocente para recuperar sua dignidade pública.

É necessário lembrar: o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa não são “benefícios” concedidos a culpados, mas direitos fundamentais de todo cidadão, justamente para que ninguém seja tratado como culpado por mera conveniência ou clamor popular.

Inverter o ônus da prova é inverter a própria lógica da justiça. Não se trata de proteger culpados, mas de garantir que apenas os verdadeiramente culpados sejam responsabilizados, com base em provas legítimas, sólidas e obtidas conforme a lei. A defesa deve ter o direito de se manifestar, sim — mas jamais a obrigação de provar a ausência de culpa.

É hora de retomar o rumo. A justiça começa no respeito às regras do jogo — e a mais básica de todas é esta: quem acusa, prova. Quem defende, contesta.


Alfredo Scaff – Presidente do MAI

Graduado em Direito pela PUCCAMP, especialista em Negociação Internacional de Negócios, Liderança em Harvard e Inglês na NESE (MA, EUA) e em Arbitragem pela PUCSP. Possui experiência e atuação profissional em diversos órgãos brasileiros, como OAB, CETESB, DECAP, Casa Civil, entre outros.

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**Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião deste veículo de comunicação.

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O Movimento Advocacia Independente (MAI) é uma associação privada sediada em São Paulo, Brasil. Seu foco principal é a defesa de direitos sociais, atuando como uma organização voltada para a advocacia e questões jurídicas.
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Um comentário

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    Sim, estamos presenciando um momento histórico no Brasil. Daqui alguns anos, esse tema será discutido nas instituições de ensino.

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